Maurício Adinolfi: Calafate, Funarte, São Paulo, 2015
[Critical Text]Sem querer abarcar toda a água que nos cerca
[Text PT]Em sua última exposição (Galeria Pilar, São Paulo, 2014), Mauricio Adinolfi apresentou um conjunto de telas intitulado “Mangue” com uma representação vegetal colorida, mas que em dado momento, o artista cobriu integralmente com um “brilho metálico de tinta prata”, tendo sido assim apresentadas na galeria.
Segundo o artista José Spaniol, que assinou o respectivo texto, o gesto de Adinolfi “sufocava” a representação, e trazia para o primeiro plano “as veladuras, as lacas, os vernizes, o pigmento prata sobre óleo”, ...
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Em sua última exposição (Galeria Pilar, São Paulo, 2014), Mauricio Adinolfi apresentou um conjunto de telas intitulado “Mangue” com uma representação vegetal colorida, mas que em dado momento, o artista cobriu integralmente com um “brilho metálico de tinta prata”, tendo sido assim apresentadas na galeria.
Segundo o artista José Spaniol, que assinou o respectivo texto, o gesto de Adinolfi “sufocava” a representação, e trazia para o primeiro plano “as veladuras, as lacas, os vernizes, o pigmento prata sobre óleo”, isto é, um conjunto de propriedades materiais que opacificavam ou anulavam a primeira referência à natureza.
Ainda que a superfície prateada com que Adinolfi cobriu as telas de “Mangue” não tenha anulado completamente a fatura da primeira pintura, e isso tenha vindo a constituir um elemento expressivo para o conjunto da exposição, havia naquela ação uma “recusa” da representação, ou simplesmente uma certa recusa do gesto precedente. Este “impasse”, creio, apontou novas direções (não unívocas, mas complementares) para Adinolfi continuar a fazer “pintura” para além da pintura.
Essas “novas direções”, porém, não são recentes. Já nos anos 40, C. Greenberg referindo-se a Mondrian insistia na “presença física” da pintura, que contrapunha ao “ilusionismo albertiano” da janela. A ênfase na “presença física” ajudava a pensar as relações, cada vez mais intercomunicáveis, entre pintura e escultura, em especial suas trocas de função, e simultaneamente consolidava a tese da “morte da pintura” (já anteriormente defendida por Malevich).
Posto isso, começaríamos por dizer que, tal como em “Mangue”, alguns gestos e opções de Maurício Adinolfi continuam a performatizar debates e impasses que a disciplina da pintura enfrentou e (ainda) continua a enfrentar, em especial, a questão do seu “fim”.
A série “Outburst” (2007) é disso exemplo. Nela o artista, auxiliado de ferramentas elétricas, diferentes brocas e instrumentos de corte, perfurou superfícies de madeira, criando diversas formas, como animais ou elementos lineares. Para além de um investimento físico do corpo, a ação aparentemente inócua de desenhar tinha um risco e um descontrole que punha em causa a ideia de figuração, levando Adinolfi, num salto interpretativo, a rapidamente “abandonar” o pensamento plástico para passar a investir sobre a materialidade e espacialidade. Como Adinolfi referiu a propósito deste trabalho: “[era uma] combinação entre conhecimento, força bruta e elétrica, refletindo a ação como uma forma de pensar, onde o exercício intelectual e muscular se mostra em potência e instante na constituição do trabalho”.
Julgo que os dois momentos acima mencionados – “Outburst” e “Mangue” –, em seu intervalo de sete anos, nos ajudam a entender a proposta que agora Adinolfi nos traz, e os impasses críticos que a sua pintura alimenta. Através de procedimentos “contra” a superfície e “contra” a representação, Adinolfi atualiza a genealogia crítica da pintura (lembrando as ações de Fontana), mas abre espaço para entender a pintura operando por subtração (e não por adição) aproximando-se da escultura e da instalação.
“Calafate, um homem é um barco”, o seu mais recente projeto, guarda relação com as intervenções realizadas pelo artista em regiões litorâneas de rio e mar, em especial ações colaborativas e coletivas que envolveram as comunidades locais (“Cores no dique”, 2009-13; e “BarcoЯ”, 2013) mas, ao contrário destas, não se configura como uma “escultura social”. Aqui o artista não está preocupado em expandir a pintura ao cotidiano das populações ribeirinhas, e “construir” uma troca de sentidos e experiências, mas o que está em questão é a experiência individual. E o mar é a superfície de contato, a “alteridade” entre o homem e o mundo, que o artista vai querer explorar. Como se refere Adinolfi “a ideia de se lançar ao mar sempre retorna à experiência individual da descoberta interior”.
Assim, “Calafate…” assume-se como um espaço de “embate” e “descoberta” através de elementos que já compõem a poética de Adinolfi, mas que aqui assumem um caráter metafísico ou, porque não, existencial.
Um barco de porte médio, visivelmente desgastado pelo uso e pelo abandono está encostado contra a porta de acesso à galeria, impedindo que vejamos, de uma só vez, toda a “narrativa” que o artista propõe. A existência de um elemento incomum – o barco – no centro de São Paulo, causa um efeito de estranhamento, suspendendo a nossa credulidade, para além de contrariar a normal circulação pelo espaço da FUNARTE. Por esse motivo, o acesso ao ponto “nevrálgico” da instalação faz-se por uma porta secundária que, uma vez transposta, nos desvenda não só a proeza técnica da colocação do barco, quanto nos apresenta aquilo que chamaria de “recriação antinaturalista do mundo”. Explico: conseguimos reconhecer todos os elementos que o artista nos apresenta, somos inclusive capazes de nomeá-los, mas escapam-nos os nexos lógicos entre eles. Objetos que sabemos pertencer ao real dissolvem as suas propriedades habituais e transmutam-se numa montagem onde os materiais recusam os seus sentidos culturais pré-estabelecidos e dialogam numa expressiva “desadequação”. Do interior do barco (mantemos a pergunta: “de onde veio e como foi ali parar?”) expande-se uma matéria irreconhecível. A luz clara apontada à instalação cria um certo silêncio e solidão reativando a escala arquitetônica e concentrando a nossa atenção na matéria derramada pelo chão: asfalto e sal, que fazem surgir ou desaparecer desenhos ou símbolos iconográficos, como num poema de Adinolfi: “O início casco, cinza, lodo; ressurgir/ da cor interna/ a jornada de cor”.
O mar, na poética de Adinolfi, não se apresenta como tema ou assunto da pintura, mas configura-se como um exercício de ir e voltar, de confronto incerto com questões específicas do artístico. Um “espaço intermediário” de elevado risco, assim como a baleia para Ismael ou o Adamastor para Vasco da Gama. Uma viagem interior (às “índias de dentro”, como escreveu Camões) onde muitas vezes se navega com um mero bote salva-vidas.
É desta forma que, diferente de “Mangue” e de “Outburst”, a pintura que enxergamos em “Calafate…” guarda certa distância relativamente à sua genealogia crítica e parece muito mais atuar sobre o processo criativo, da mesma forma que uma ideia filosófica atua sobre o modo como pensamos. E por isso, torna-se necessário (pelo menos para mim isso chega de forma clara) que o artista esteja interessado em testar e abrir as potencialidades de um campo especulativo sem as contingências específicas da pintura. É isso que torna esta exposição um pretexto para continuar a explorar os impasses próprios da disciplina, podendo ainda se aventurar por outros mares.