Jorge Molder: o jogador, ZUM, Instituto Moreira Salles, São Paulo, 2019
[Interview]
O jogador
[Text PT]Um dos principais nomes da arte contemporânea portuguesa, Jorge Molder começou sua carreira de fotógrafo no final da década de 1970 com trabalhos em preto e branco, como Vilarinho das Furnas (uma encenação), paisagens com água, casas e um trailer (1977) e Fotografias de dentro e de fora (1978-79), que exploravam estruturas narrativas e a linguagem do cinema. A partir da série Autoportraits [Autorretratos] (1979-87), o tema da autorrepresentação e as tensões entre identidade e duplicidade, estranhamento e familiaridade ...
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Um dos principais nomes da arte contemporânea portuguesa, Jorge Molder começou sua carreira de fotógrafo no final da década de 1970 com trabalhos em preto e branco, como Vilarinho das Furnas (uma encenação), paisagens com água, casas e um trailer (1977) e Fotografias de dentro e de fora (1978-79), que exploravam estruturas narrativas e a linguagem do cinema. A partir da série Autoportraits [Autorretratos] (1979-87), o tema da autorrepresentação e as tensões entre identidade e duplicidade, estranhamento e familiaridade assumem lugar de destaque em sua obra.
A relativa simplicidade das imagens — são poses, expressões faciais e gestos contidos, além de objetos cotidianos — contrasta com a concepção complexa de suas séries, repletas de referências filosóficas e literárias. Para o fotógrafo, os trabalhos encarnam uma espécie de jogo imprevisível determinado por um pequeno conjunto de princípios. “Uma série”, diz, “é o conjunto de circunstâncias e suas alterações”.
As fotografias descontínuas de Jeu de 54 cartes [Jogo de 54 cartas] (2017) estendem as explorações da autorrepresentação de trabalhos anteriores como Anatomia e Boxe (1996), Nox (apresentada na Bienal de Veneza de 1999) e Pinocchio (2009), e radicalizam o diálogo com o jogo e o acaso, numa sequência narrativa que se insinua, mas cujo desenlace é indefinidamente adiado. Na entrevista a seguir, o artista e ex-diretor do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian reflete sobre sua formação, sua trajetória e esta série mais recente.
MM: Unidade e multiplicidade estão sempre presentes nos seus trabalhos, mas cada vez de uma forma distinta. Uma imagem é indicativa de um projeto que se vai construindo em perfeita consonância com uma ideia de temporalidade, mas também de fim. É possível caracterizar a sua obra como um contínuo de “séries de séries”?
JM: Eu trabalho sempre por séries. Uma série de fotografias é uma espécie de jogo. À partida, as regras são definidas, e enuncia-se um conjunto de princípios. Depois, o jogo vai-se desenvolvendo e os princípios vão sendo progressivamente alterados. Costumo dizer que uma série é um conjunto de circunstâncias e suas alterações. Há um lado cinematográfico que lhe é inerente.
Na verdade, se existe a temporalidade das séries, existem também as suspensões que procuro sempre. Criar desvios, aparências distantes e situações controversas é uma forma de adiar qualquer coisa. A continuidade faz parte da imagem, mas tem de haver um sobressalto, uma inquietação, uma suspeita.
Gosto de jogar com todas essas contradições narrativas da imagem. Chamo-lhes “imagens”, um termo inevitavelmente provocador, e que nos deixa sempre à espera de um depois, mesmo sabendo que esse depois nunca chega, ou mesmo que ele não existe.
Não conheço algo tão livre de constrangimentos a respeito da imagem do que o filme mais recente de Jean-Luc Godard, Imagem e palavra (2018). Godard trata a imagem e os seus formatos de uma forma disruptiva, que alguns acharão desrespeitadora dos cânones tradicionais. Mas é precisamente isto que nos permite ver mais, e “ver mais” é tudo o que um artista sempre procura. Deixar ver os maus modos, os maus usos e os maus-tratos da imagem. Eu sempre me senti muito afastado da fotografia em sentido estrito.
A série Anatomia e Boxe (1996), que remete à sala de anatomia e ao ringue, à violência e transformação corporal, é para alguns críticos uma inflexão na sua carreira. Você passa a trabalhar de forma sistemática a representação do seu próprio corpo, rosto e derivações, afastando-se dos usos conceituais da fotografia serialista que marcaram o contexto cultural do seu início como artista. Como lê essa mudança?
É preciso recuar um pouco e não ver as coisas de uma forma tão crítica. Na verdade, comecei a fazer autorretratos no princípio dos anos 1980, uma série de fotografias em que me encontro enquanto eu próprio, e que deram origem a uma exposição em Montpellier em 1987. É, porém, um pouco antes de Anatomia e Boxe, que sinto essa mudança. Nas séries The Portuguese Dutchman [O holandês português, 1990] e The Secret Agent [O agente secreto, 1991] passo a encontrar uma representação peculiar de mim mesmo, um personagem com o qual não coincido completamente. Já em Waiters [Garçons] (1986) essas questões estavam presentes.
O que se seguiu foi apenas um uso mais exclusivo e premeditado de mim. O sucesso das separações tem sempre os seus limites. Mesmo constituindo-se como uma espécie de modelo, o meu trabalho tem mais a ver com o teatro e a performance, onde ocorre sempre um deslizamento que é introduzido pelo tempo, inescapável e que, mesmo sem o querer, altera essas separações determinadas à partida. Mas não me considero um artista conceitual, considero-me um artista muito contaminado, especialmente pelo cotidiano que tem que ver com a vida na sua globalidade.
Recentemente participei de uma exposição na Culturgest, em Lisboa, onde foram apresentadas as imagens que fiz em 1975 em Vilarinho das Furnas [aldeia submersa em 1971 para construção da barragem de mesmo nome]. O mais impressionante é que, muito embora tenham sido feitas num contexto de experimentação e serialismo, a impressão em papel Kodalith, muito contrastada, dá às imagens um ar “fora do tempo”. Em conversa com Delfim Sardo, o curador da exposição, ele dizia que essa impossibilidade de localização temporal era um embrião de muitas séries posteriores. É possível que seja verdade…
Na sua infância, você costumava mexer rapidamente os braços e as mãos em frente ao espelho, procurando surpreender um descompasso entre si e seu reflexo. É isso que encontramos em várias imagens de Jeu de 54 cartes?
Há um movimento, que eu diria que é repartido. Ora é meu, quando eu me mexo, ora é da máquina, sendo eu a prepará-la para esse pontapé.
Tenho sempre questões sobre a desfocagem e a não desfocagem. Há uma fotografia de Waiters em que o empregado de mesa segura uma bandeja. Fiz muitas imagens desse momento e cheguei à conclusão de que a fotografia que melhor corresponde à nossa visão “certa”, chamemos-lhe assim, não é a fotografia mais fixa, mas é precisamente aquela em que há algum movimento, uma pequena oscilação.
Certa literatura, de Joseph Conrad a Malcom Lowry, é recorrentemente evocada para falar do seu trabalho. Jeu de 54 cartes parece-me, ao invés, próximo do gênero do ensaio, onde não há conclusão, mas uma montagem possível diante da qual o leitor observa a complexidade da argumentação. O que está em jogo é uma arte de jogar, um comentário da existência, a pantomima maneirista da vida. É isso?
A minha reputação é, em primeiro lugar, com a literatura. Sempre ma apontaram, a meu ver, um tanto injustamente. Essa relação é (ou melhor, foi) um pouco oculta. Em rigor, houve um pequeno livro com a Agustina [Bessa-Luís], um sobre Conrad, outro sobre A criada Zerlina (1949) do Hermann Broch, e talvez caiba ainda referir um dia o Georges Perec.
Literatura, pintura, cinema, ruínas, cotidiano atravessam o meu trabalho, mas também o lixo, o insignificante, o anônimo. E também o jogo, que é algo muito próximo da vida. É Deus ou Satanás quem o conduz?
Procurei explorar essa “pantomima” segundo as minhas próprias regras e sem pretender alcançar qualquer tipo de conclusão, já que os arranjos e as combinações que cabem num jogo são incontáveis. O jogo é dos meus modos de vida mais reconhecíveis, mas não tem a ver com perder ou ganhar, com objetivos alcançadas ou troféus reputados. É um diálogo só comigo, uma conversa sem interlocutor, entre o acaso e a necessidade. É como a canção do italiano Paolo Conte: “Come di, comédie…”.
Ouso um jogo de aproximações relacionado ao número quatro: Hamm, Clov, Nagg e Nell, os personagens trágicos e cômicos da peça Fim de partida (1957), de Samuel Beckett; Rei, Capitão, Soldado, Ladrão, o título de uma exposição sua, em 2014; e agora, “Caras”, “Mãos”, “Bocados” e “Espectros”, os quatro naipes de Jeu de 54 cartes. Há alguma relação?
E poderíamos acrescentar outros quatros: os pontos cardeais, os cavaleiros do Apocalipse. A lista é infinita!
No caso de Beckett, a minha aproximação foi precoce e por acaso. Estava a passar férias em casa de um primo muito mais velho e dei de caras com Murphy (1938), que me chamou irresistivelmente e que, talvez, tenha mudado a minha vida. Depois fui à procura de outros, de Malone morre (1951), de Molloy (1951), e achei que não podia ser por acaso, já que o meu nome de família não ajuda.
Mas julgo que foi antes disso que li Esperando Godot (1952). Tenho uma vaga lembrança em casa dos meus pais, mas a memória trai, na medida em que estamos sempre a reconstruir a vida a um ponto que já não é para os outros, mas para nós mesmos. Ao mentir, mentimo-nos, mas isso faz parte daquilo que acontece quando procuramos uma razão de ser. Até as “coisas” apenas parecidas são reconstruídas como as verdadeiras. Penso que é esse o caso do “meu” Godot.
Tendo Beckett em mente, ocorre-me que não conheci muitos jogadores de xadrez, mas conheci alguns. O xadrez é uma outra forma de jogo. O acaso não é aqui o fio condutor ou sequer determinante: é um jogo que encerra uma forma dramática que lembra Deus nos seus melhores momentos. O acaso pode estar distante, mas a mão que mexe as peças é uma imagem focada que, por vezes, deixa suspeitar o nosso destino. Depois o derrube do rei configura no nosso imaginário o poder ilimitado de derrubar o vencido. Nem na guerra isso é tão visível.
As séries que você menciona são isso mesmo, lengalengas, ladainhas, jogos de palavras… música. E a meu ver os números são todos iguais — inclusive o 19, pelo qual eu não morro de amores.
No caso de Jeu de 54 cartes, e embora eu sabote a conformidade do baralho, pois afastar do jogo toda a subversão é lamentável, as configurações que criei foram ocorrendo. Explico: é uma sequência narrativa na aparência, mas onde nada há para contar, não obstante estarem reunidas condições para fazer despertar o sentido de decifração em quem olha.
Santo Inácio de Loyola preconizava que era preciso agir contando apenas consigo mesmo, como se Deus não existisse, mas na recordação constante de que tudo dependia da sua vontade. O jogo não é escola menos árdua. A forma como se vence é mais importante que a vitória em si?
Lembra-se do Takeda Shingen, do Akira Kurosawa? Ele nunca se movia, e essa sua quietude era sinônimo do seu ser vitorioso. Ao se mover, morreu com a sua aura e aí entra em jogo o seu “duplo igual”, Kagemusha, que não se igualava nessa imobilidade. São sagas em que a performance dos heróis implica qualidades morais desenvolvidas no plano mítico, e em que o desenrolar do jogo, do seu tempo e das suas virtudes, é um aspecto que leva ao momento único do derrube do rei, mesmo que ilusoriamente. Mas atenção! Tem de se saber criar uma estratégia atrativa, provocar ocasiões, criar cenários. As distâncias são muito variadas e variáveis.
Para que serve o gabarito, o pequeno cubo metálico magnético que constitui a 55a carta do baralho assistemático de Jeu de 54 cartes?
O gabarito constitui a 55a imagem da série, uma carta a mais do baralho, portanto. É simultaneamente um sinal de respeito às regras e um sinal de provocação. É uma espécie de desrespeito infantil; não há razões, só pretextos.
Tenho uma história muito curiosa com esse objeto. Como sabe, trata-se simplesmente de um cubo de aparência metálica, magnético, ao qual eu dei este nome. Em 1994, estava a acompanhar a montagem da minha participação na Bienal de São Paulo e um dos montadores veio ter comigo e perguntou: “O senhor viu o meu gabarito?”. Fiquei desconcertado, pois a palavra tem em Portugal um outro contexto, por exemplo, quando dizemos que uma determinada pessoa é de alto gabarito, querendo isto significar “ilustre” ou “importante”. Mas naquela situação rapidamente entendi que “gabarito” significa uma unidade de medida que serve para aferir ou controlar as dimensões ou as posições de certos objetos no espaço. E percebi também os mais antigos parentes da imagem.
Uso esse tipo de cubos magnéticos nas paredes do meu estúdio e serve-me para regular a presença do meu corpo, a minha altura; saber onde estive e para onde vou.
Para além de imprimir, você também edita e trabalha digitalmente as imagens. Qual a importância dessas etapas?
A minha mãe sempre me ensinou que se num restaurante a comida é boa, nunca queiras visitar a cozinha. Eu imprimo e reimprimo, posso passar dias ou semanas a fazer o mesmo, aproximando-me aos poucos daquilo que ando à caça. Quando faço imagens, tenho, em princípio, uma ideia daquilo que quero. Outras vezes tenho uma ideia aproximada daquilo que procuro. Outras vezes estou mesmo preparado para ser surpreendido. É talvez este o momento a que o Grande Mestre chamava encontro. Só que Ele não procurava.
Com que artistas você dialoga?
Sempre gostei de alguns fotógrafos, mas nunca fui um parceiro incondicional: proximidade e afastamento sempre fizeram parte da minha relação com a fotografia. Comecei pelos clássicos: Eugène Atget, August Sander, os norte-americanos e, naturalmente, Bill Brandt, Claude Cahun e Paul Outerbridge. E tantos outros que estou a esquecer ou a não querer lembrar. Não estou a oferecer referências, mas, de alguma forma, a falar-lhe da minha família, e de alguns mais distantes.
Depois chegaram os que, não sendo fotógrafos, usavam fotografia — se recusavam obstinadamente a serem aproximados à fotografia, mas exerceram sobre ela um efeito decisivo —, e, por último, uma nova geração que voltou à fotografia, arrastando-a para fora dos seus hábitos mais tradicionais e corporativos, e dando-lhe outra liberdade, outra distância, outra independência, diria new boots and pants.
Há um que não posso omitir pelo que me ensinou e pela amizade: John Coplans, com quem convivi, muito aprendi e de quem organizei uma retrospectiva na Fundação Calouste Gulbenkian em 1992, conversa que continuamos no livro Luxury Bound (1999) e que mantivemos viva até o fim. Em Portugal, há um desses que jamais poderei esquecer: Ângelo de Sousa.
Devo-lhe dizer que a fotografia me irrita, assusta e atrai. É mesmo assim! Alguns dos meus santos não moram por aqui, mas vou sempre procurando marcar com eles encontro, apesar dos tempos, das diferenças de uso, e talvez por “coincidirem com tudo aquilo de que não sou capaz”, como diria o Ângelo.
Você escreveu que Coplans “constrói com persistência imagens usando-se como modelo”. O mesmo poderia ser dito sobre você?
Sim, embora a história de Coplans seja mais a do corpo, a sua fisicalidade e transformação. Mas sim, temos uma equação parecida, sem dúvida, entre forma e condição fotográfica. Também a Coplans interessa a variação, a série, mais as perguntas e menos as respostas.

