Recém-inaugurada em São Paulo, Frente de Trabalho de Ícaro Lira (1986, Fortaleza) é a primeira individual do artista na galeria Jaqueline Martins e uma excelente oportunidade para aprofundar as relações que a arte pode realizar com os mais diversos contextos sociais, políticos e culturais. Em meio ao clima efervescente e festivo da programação paralela à feira SP-Arte, esta exposição traz-nos toda a gramática que o artista vem construindo desde há cerca de dez anos, e incita-nos a olhar os interstícios – nem sempre otimistas – da história do Brasil.
Depois de Desterro – expedição etnográfica de fição (2014), Museu do Estrangeiro (2015) ou Residência Cambridge (2016), projetos de longa-duração que permitiram a Ícaro Lira consolidar uma prática artística para além do circuito “atelier-galeria-instituição-coleção”, Frente de Trabalho assume um caráter mais decantado ou filtrado, que prescinde do texto e da resenha histórica, e enfrenta a plasticidade visual dos materiais na montagem. No trabalho de Lira, como talvez em nenhum outro artista da sua geração no Brasil, conseguimos entender como a ideia de “objeto de arte” cede relevância à precariedade ou “pobreza material”, não no sentido das proposições desmaterializadas dos artistas dos anos 60 e 70, mas em afinidade direta com uma “estética do subdesenvolvimento” desses mesmos anos, elaborada por artistas como Glauber Rocha, Artur Barrio, Horacio Zabala, Luis Ospina e Carlos Mayolo, entre outros, contra as narrativas colonizadoras do “desenvolvimentismo” (veiculadas pelas alianças com os EUA). Neste sentido, Frente de Trabalho dá continuidade às “obsessões” maiores do artista, empenhado em desenterrar futuros nos escombros do passado, suturar as fissuras da linguagem e restaurar significados que têm vindo a desaparecer, em meio à “obscenidade” política que o Brasil atravessa. Mostra-nos ainda um arranjo sensível de materiais (a maior parte descarte, “lixo”, objets trouvés), que são críticos da arte tornada mercadoria de luxo.
Nas palavras do curador Gabriel Boghossian (que assina o texto da exposição) Frente de Trabalho “produz uma reflexão em torno do trabalho e do trabalhar – esse gesto tão cotidiano quanto universal –, sem deixar de lado questões relativas ao trabalho na arte e ao sistema que o sustenta e explora”. Mas ao invés de Lira tecer um comentário panfletário sobre o trabalho na história do Brasil (o que tornaria a proposta uma mera ilustração, como muitas que vemos por aí), a exposição consolida a ideia de que história e a memória são “topografias” de imagens, conhecimento e lugares. O principal risco deste tipo de operações, que jogam luz sobre personagens e temas excluídos da história (a perspectiva benjaminiana dos “vencidos”), é a criação de utopias vãs, crentes na arte como veículo privilegiado de denúncia, capaz de agir na transformação do mundo, o que não é verdade. No sentido inverso, a exposição de Ícaro Lira reitera a ideia de que a arte pensa (o que é diferente de fazer pensar), num esquema ao mesmo tempo sensível e inteligível por meio do qual uma matéria e uma forma se combinam – nesta exposição existe um especial cuidado no enquadramento dos materiais (“Objeto encontrado #1” e “Sem título, parte #1 e #2, da série ‘Frente de Trabalho’”).
Sem roteiro pré-estabelecido como em todos os seus projetos, a sensação que temos é que Frente de Trabalho entrega-nos vários “destroços” (como aqueles que encontramos nas praias depois de uma tempestade), e convida-nos a fazer destes as bússolas de navegação para percorrer esta mostra. O tom por vezes casuístico e nihilista, em que os objetos recusam fixar-se em formas definitivas, é deliberado. Resulta de uma aguda percepção dos entraves coloniais que ainda operam no presente, e é visível no “esconde-e-revela” das veladuras, das caixas, das sobreposições, dos áudios distorcidos até à cacafonia, das pedras e objetos insólitos, aparentemente deslocados de contexto (como o pacote de leite que o governo italiano distribui gratuitamente aos emigrantes e refugiados).
Mas um único conjunto deste amontoado de “náufragos”, julgo, resume toda a exposição. Trata-se de uma composição de postais da ditadura divulgando as “grandes obras do regime” ((Ponte Rio-Niterói, Itaipu e Mausoléu Castelo Branco) e de “flagrantes” de quebradores de pedra, tirados nos anos 30, no contexto da “Missão de Pesquisas Folclóricas”, iniciativa do escritor Mario de Andrade (1893-1945), que percorreu o Nordeste documentando a cultura popular. Ambas geradas na absoluta crença na tecnologia da fotografia, a natureza destas imagens é bastante distinta. Enquanto que os postais da ditadura expressam a incursão da tecnologia nos domínios da política – era necessário disseminar propaganda para construir a coesão nacional -, os “flagrantes” dos quebradores de pedras testemunham a urgência em coletar registros de profissões e tradições culturais que estavam a desaparecer. Como escreve Mário de Andrade: “Faz-se necessário que ela [a etnografia brasileira] tome imediatamente uma orientação prática baseada em normas severamente científicas. Nós não precisamos de teóricos (…). Nós precisamos de moços pesquisadores que vão às casas recolher com seriedade e de maneira completa o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo progresso invasor”.
Disseminação e resistência, propaganda e “cápsulas do tempo”, de mãos dadas no nosso presente histórico e nesta Frente de Trabalho. Num tempo de visibilidade excessiva em que tudo indica não cabe nem ao artista nem à arte nenhum papel ético, talvez devamos trair, como faz Ícaro Lira, a ditadura do trabalho… Lavorare Stanca [“trabalhar cansa”].
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