Histórias da sexualidade: antologia, MASP, São Paulo, 2017
[Critical Text]Histórias da sexualidade: antologia
[Text PT]No contexto da exposição Histórias da Sexualidade, inserida na programação homónima do MASP (2016 e 2017, São Paulo), e que contou com seminários e exposições sobre o tema, o MASP editou uma antologia de textos com o intuito de promover uma reflexão crítica sobre arte, género e sexualidade.
Com a participação, entre outros e outras, de: Amelia Jones, Carol Duncan, Cecilia Fajardo-Hill, Djamila Ribeiro, Douglas Crimp, Jota Mombaça, Lucy R. Lippard, Miguel A. López, Nina Power, Carla Zaccagnini; ...
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No contexto da exposição Histórias da Sexualidade, inserida na programação homónima do MASP (2016 e 2017, São Paulo), e que contou com seminários e exposições sobre o tema, o MASP editou uma antologia de textos com o intuito de promover uma reflexão crítica sobre arte, género e sexualidade.
Com a participação, entre outros e outras, de: Amelia Jones, Carol Duncan, Cecilia Fajardo-Hill, Djamila Ribeiro, Douglas Crimp, Jota Mombaça, Lucy R. Lippard, Miguel A. López, Nina Power, Carla Zaccagnini; Dias & Riedwig; Dora Longo Bahia; Graziela Kunsch; Ivo Mesquita; Jochen Volz; Kiki Mazzucchelli; Luisa Duarte; Luiz Roque; Marta Mestre; Regina Vater; Teresinha Soares; Virginia de Medeiros.
PERGUNTA MASP: O Brasil é um país de diversos e perversos contrastes e contradições, também nas questões de gênero e de sexualidade e em suas histórias da arte. Se, por um lado, temos uma história da arte do século 20 em que as figuras centrais são mulheres (algo que se reflete também na dura realidade do mercado de arte), poucas se identificaram com discursos e programas feministas de qualquer espécie, geração ou onda [wave]. Embora o país hospede a maior parada LGBT do mundo, é também líder no número de crimes contra minorias sexuais. As narrativas e conteúdos LGBT só vão surgir de forma mais eloquente e incisiva nos trabalhos dos artistas no final do século 20. Na crítica e na historiografia também sempre foram raros os estudos que fazem leituras e contextualizações feministas e, mais recentemente, queer (termo norte-americano traduzido por kuir no Brasil). O panorama parece estar mudando nos últimos anos, e cada vez mais encontramos artistas, críticxs e historiadorxs cujo trabalho é fortemente informado por essas perspectivas. Nesse sentido, algumas perguntas importantes podem ser colocadas: de que maneira a prática artística pode ou deve engajar-se com questões como a igualdade entre os gêneros e o direito das mulheres, das minorias, a igualdade de condições de trabalho e de visibilidade para artistas mulheres ou homens? Como os debates em torno das questões feministas ou LGBT informam seu trabalho ou a recepção e interpretação dele?
RESPOSTA Marta Mestre: A disputa por direitos estéticos iguais para todas as formas de expressão artística (“arte das crianças”, ready-made, arte dos doentes mentais, etc.) foi um campo de ação da arte moderna que levou a uma extraordinária ampliação sobre o que pode ser considerado “arte”. Essas conquistas, porém, prendem-se sobretudo por aspectos formais, relativos ao objeto. A igualdade dos sujeitos ainda continua a ser relegada para as “lutas sociais”, como uma teoria marxista ao serviço da arte (que raramente é constitutiva do objeto).
Posto isto, diria que a resposta à pergunta acima tem de ser necessariamente “contingente” e informada pelas circunstâncias específicas de cada país ou de cada comunidade de participantes. Assim sendo, se num contexto de garantias asseguradas eu diria que não faz sentido um desenho de programação ou curadoria por cotas, vejo bastante necessárias, no Brasil, atitudes e ações que diminuam a desigualdade dos lugares de representação da arte pelas diferentes identidades de gênero. E entendo que as instituições têm um papel importante nesta dianteira, como pilares de uma democracia paritária.
O argumento da “guetização” — aquele que defende que fomentar medidas afirmativas e de paridade no contexto da arte reduz a riqueza epistemológica do debate — é, assim, um não-argumento (do mesmo nível que a “meritocracia”) que se ressente da negação em enfrentar este assunto. Se a desigualdade de género no Brasil é parte de um problema à escala global, existem especificidades advindas da história colonial que dão contornos locais ao problema. O profundo entrecruzamento da desigualdade de género nas fraturas sociais, raciais e de classe.
Enquanto curadora que atua e pensa o campo da arte a partir do Brasil sinto que assistimos a um debate dinâmico e crescente na participação. Se por um lado têm vindo a ser afirmadas pautas sobre as questões de representação, por outro lado, temos uma cultura institucional (dos museus, centros de arte, fundações, bienais, galerias, prêmios oficiais etc.) que continua fortemente comprometida com o sistema de privilégios, de raça e de gênero, predominante.
Dentro deste quadro de avanços e impasses, com impactos locais e globais, gostaria de atentar para dois fatores profundamente relacionados e que endossam algumas resistências à mudança. O primeiro refere-se à cultura masculina dominante, isto é, ao privilégio de homens cisgênero, brancos, face às demais identidades de gênero e raças em iguais situações de acesso ao mundo da arte. Soma-se a essa cultura machista o “sucesso” neoliberal, técnicas de individualização e procedimentos totalizantes do capitalismo. Só isso explica, que em pleno século 21, os órgãos deliberativos (chefias, conselhos, assembleias etc.) de museus, fundações e bienais no Brasil continuem a evitar o debate da paridade democrática, e a garantir privilégios com base em género, raça e classe. O segundo fator deve-se ao modelo histórico e historiográfico que (ainda) dá estrutura epistemológica à arte no mundo (aqui não específico do Brasil). De matriz dualista e eurocêntrica, com origem no Renascimento e nos debates do Humanismo, este modelo tem persistido desde Giorgio Vasari até Erwin Panofsky. Repercute a ideia de cânone e de narração predominantes, privilegiando a hierarquia sexual, do homem cisgênero, no exercício da história. Segundo este modelo, a construção subjetiva do “feminino” e/ou de outras identidades de gênero são temas secundários à manutenção do cânone.
Não obstante a proeminência dos “estudos feministas” e “queer” um pouco por todo o mundo, ainda existe um grande atravessamento da “narrativa predominante” – à imagem de um número de ventríloquo, onde uns falam pelos outros, sendo que estes “outros” não teriam a capacidade de historizar a sua própria narrativa.
A década de 70 e início dos anos 80 são bastante importantes para entender as disputas de hoje. É nestas décadas que se dão, um pouco por todo o mundo, os debates do “fim da história” (o fim do modelo de narração dominante) e os movimentos de luta pelas igualdades, feminismo e outras identidades sexuais. É um paradigma hierárquico que rompe junto e que definitivamente abre caminho para a entrada da inclusão social de todo o tipo de minorias na “política de direitos estéticos iguais” que citei acima.
Esta “abertura” é, julgo, tão relevante quanto crítica. Se por um lado tem a ver com a necessidade de regenerar a crise do cânone da história da arte ocidental, também está ligada à sobrevivência do modelo econômico e cultural do capitalismo, aquele que, em sua orgânica colonial, incorpora a “exceção” no establishment, e neutraliza a potência da subjetividade sexual. A marginalidade já não é heroica (por alusão ao slogan de Hélio Oiticica “Seja marginal, seja herói”), torna-se agora um lugar “respeitável”, “domesticado”.
No Brasil, a reação ao contexto político atual (“impeachment” de Dilma Roussef e golpe democrático pelo governo Temer) vem-se traduzindo numa crescente politização da arte e da curadoria, o que retoma as lutas da década de 70 e início dos anos 80. Porém, contrariamente a essas, hoje as estéticas dissidentes se tornam neutralizáveis.
Em que medida o contexto político atual no Brasil está a afetar a urgência de práticas curatoriais politizadas? De que forma a incorporação de subjetividades e espaços de representação outrora não considerados está a instituir práticas curatoriais não normativas, “feministas” e “queer”? Ou ainda, como essas transformações estão a afetar as instituições de arte, seus aspectos funcionais e laborais, e o seu projeto histórico? São perguntas que podemos somar ao enunciado….
Pessoalmente penso que uma prática curatorial “feminista” e “queer” deve ser pensada fora de uma agenda política contingente, o que para mim significa imaginar poéticas que alterem as condições de produção, interpretação e distribuição da arte, contra o discurso dominante, os temas privilegiados e os artistas do cânone. Neste sentido são “feministas” e “queer” todas as curadorias que redefiniram e redefinem o uso de infraestruturas e instituições, a participação dos públicos, a experiência da arte