Privilegiando o uso deliberado de pigmentos naturais e aptidões técnicas que remetem para a artesania, a exposição Hopes and Fears de Flávia Vieira constitui-se na contramão da visualidade contemporânea, estridente e caótica. Um silêncio táctil, uma intensidade difusa, uma repetição cromática quase “monótona”, impregnam tanto os objetos quanto a nossa percepção. É esse o gesto fundamental de Flávia Vieira nesta “cena”, e é essa a constância que podemos esperar do seu trabalho, desde as primeiras exposições que realizou em Lisboa em 2010.
Um aspeto essencial desta exposição é o estatuto dos objetos aqui apresentados. “Artefactos” seria uma palavra apropriada para estes – tapeçarias, peças modeladas, pequenas esculturas –, já que combina a ideia do objeto final com os processos da sua criação, apontando também para as fronteiras que se estabelecem entre o artístico e o artesanato, o erudito e o popular, a máquina e a mão.
Embora possam ter sido planeados na mente, numa espécie de meia-luz conceptual, a verdadeira vibração destes objetos surge no trabalho final. O que Flávia Vieira procura criar não é uma “avalanche” de cor, mas uma organização e construção que é sensível em manter o delicado frescor da cor. E a cor, sabemo-lo, é sobre os sentidos, um meio de compreender a essência das coisas, as pequenas mãos do mundo, como diria Eugénio de Andrade.
Os trabalhos aqui reunidos, realizados com uma intencional diversidade de meios técnicos, têm como fio condutor o uso de pigmentos naturais do Brasil, país onde a artista vive e trabalha desde 2012. Beterraba, açaí, jatoba, feijão, carvão, entre outros, são triturados e manipulados com vista à obtenção de pigmento colorido que depois é mergulhado na tintura das tecelagens, aplicado no barro cozido, ou diretamente na parede da galeria. Por isso mesmo, uma espécie de “cosmética” impregna a exposição Hopes and Fears conferindo uma identidade (uma “máscara” segundo M. Mauss), que remete para operações simbólicas e ritualísticas, sintoma de um mundo invisível em ação na materialidade.
Mas igualmente presente no seu trabalho é a pesquisa sobre o fazer institucionalizado que parte da clareza e do rigor do projeto moderno brasileiro e que se traduz na apropriação de formas e signos geométricos humanizados. Como refere a artista: “É deste confronto que é gerada uma marca de inconformidade ou de desadequação tornada produtiva: a abstração geométrica das formas puras que é tratada com superfícies rugosas e imprecisas ou a questão da abstração e da frontalidade do padrão têxtil que ganha contornos irregulares”. Ao mesmo tempo, essas formas e signos geométricos codificam nelas mesmas uma linguagem primeira destituída de história e, por isso, “ilegível” para os dias de hoje.
Finalmente, a proposta de Flávia Vieira sugere um sentido crítico sobre a formulação do sujeito histórico dos sentidos no mundo ocidental, especialmente desde os primórdios da revolução industrial até ao capitalismo avançado de hoje. Em que circunstâncias perdemos a capacidade de fazer com as mãos? Que tipo de conhecimento deixámos para trás, sob a desculpa de ser obsoleto, lento ou primitivo? parece questionar a artista. Já no fim do séc. XIX, o ensaio do artista e escritor britânico William Morris (1834-1896), que dá o título a esta exposição, reforçava este pessimismo inerente, e apontava para a necessidade de uma ética para os sentidos, como reação ao sistema capitalista que à época se anunciava.
Ameaçada a nossa capacidade de fazer com as mãos, como continuar a fazer?
Beterraba, açaí, jatoba, feijão, carvão, simples assim.