Conversa à volta da Imago, Re.vis.ta nr. 3, 2017
[Interview]Conversa à volta da Imago: João Figueira, Marta Mestre e José Luís Neto
[Text PT]Por Gerbert Verheij e Luísa Salvador
Desde 2010 a colecção Imago tem traduzido para português autores incontornáveis para o pensamento contemporâneo no âmbito da “imagem”. Se hoje nomes como Georges Didi-Huberman, Victor I. Stoichita ou Hans Belting soam familiares, parte do crédito sem dúvida lhe pertence. A colecção surge pela mão de três entusiastas da imagem, João Figueira, Marta Mestre e Vítor Silva. Inicialmente o projecto editorial foi acolhido pela Dafne, a editora de arquitectura portuense. Ali aparecem entre ...
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Por Gerbert Verheij e Luísa Salvador
Desde 2010 a colecção Imago tem traduzido para português autores incontornáveis para o pensamento contemporâneo no âmbito da “imagem”. Se hoje nomes como Georges Didi-Huberman, Victor I. Stoichita ou Hans Belting soam familiares, parte do crédito sem dúvida lhe pertence. A colecção surge pela mão de três entusiastas da imagem, João Figueira, Marta Mestre e Vítor Silva. Inicialmente o projecto editorial foi acolhido pela Dafne, a editora de arquitectura portuense. Ali aparecem entre 2010 e 2011 Estética e política: A partilha do sensível, de Jacques Rancière, O que nós vemos, O que nos olha, de Georges Didi-Huberman, e A verdadeira imagem, de Hans Belting. Estes três autores estavam a ganhar visibilidade em Portugal: Rancière e Didi-Huberman participaram nas conferências de A República por vir, na Gulbenkian, em Novembro de 2010; em Março de 2011 a própria Imago trouxe Rancière e Belting a uma concorrida conferência na Culturgest; o último fez ainda uma conferência no Carpe Diem Arte e Pesquisa.
Em 2012 a colecção passou a viver de forma autónoma (sem excluir as parcerias), editando em nome próprio (a KKYM). Os três primeiros livros neste novo formato tiveram uma empolgada recepção crítica. Imagens apesar de tudo, novamente de Didi-Huberman, “O Nascimento de Vénus” e “A Primavera” de Sandro Botticelli, de Aby Warburg, e O Efeito Pigmalião, de Victor I. Stoichita, foram objecto de recensões elogiosas de António Guerreiro (no Expresso) e Nuno Crespo (no Público). Guerreiro ressaltou a “qualidade rara” das traduções e edição; Nuno Crespo até detectou uma “mudança de paradigma” na história da arte, cuja anatomia buscou traçar no ano seguinte (Público, 11 Janeiro 2013).
Desde então a Imago tem publicado com regularidade, construindo um catálogo coerente à volta da teoria da imagem que neste momento abarca 17 títulos, de entre os quais se destaca o nome de Didi-Huberman (com seis livros traduzidos). Com a excepção de Rancière, bastante traduzido para português, não há outra editora a publicar os mesmos autores. Os livros da Imago distinguem-se pela qualidade de traduções e os cuidados na edição. A persistência desta iniciativa, num panorama editorial nacional que não facilita a vida às pequenas editoras, é notável.
Depois de 2012 a recepção continuou, em geral, positiva: traduções de Didi-Huberman (em 2013 e 2015), Belting (em 2014) e Rancière (2014) figuraram entre os dez melhores ensaios do ano seleccionados pelo Público. Contudo, o projecto editorial foi algo desacompanhado pela crítica. António Guerreiro (até 2014) e Nuno Crespo têm sido os únicos autores a dedicar atenção regular à colecção, e há vários livros – incluindo obras tão relevantes como Breve história da sombra (2016), de Stoichita, Teoria do Acto Icónico (2010) de Horst Bredekamp ou os ensaios sobre Domenico Ghirlandaio (2015), de Warburg – que, surpreendentemente, não conheceram recensão alguma. Também se faz notar a ausência de crítica especializada, não obstante o inegável interesse académico das publicações (duas excepções: Joana Cunha Leal na extinta L+Artes, logo em 2011, e Cristina Vasconcelos de Almeida na revista Museus e Investigação, do IHA, em 2012). Esta ausência deve-se porventura a uma mais geral incapacidade por parte das áreas académicas relevantes em manter um diálogo actualizado e consistente com a bibliografia especializada.
A actividade deste projecto não se esgota, no entanto, nos livros. Auto-define-se como “projecto de difusão de autores que pensam a imagem em termos inovadores”. A tradução e edição são seguramente a dimensão mais visível, mas a Imago – adoptando aqui o nome Ymago – também trabalha a difusão através da realização de mesas-redondas, conferências ou até espectáculos e eventos. Nesta vertente, e além das já mencionadas conferências de Rancière e Belting em 2011, a Ymago trouxe a Portugal Didi-Huberman (2012, 2014, 2015, 2016), Stoichita (2012, 2016) e Bredekamp (2015). Também publicaram, como via complementar de acesso ao mundo destes autores, uma quase vintena de “Ensaios breves” que acompanham os livros principais e estão disponíveis no site da Imago e desde 2014 em e-book.
Dentro do mesmo entendimento alargado e inovador da imagem proposto pelos autores traduzidos, o projecto inclui também práticas artísticas que, de uma forma ou outra, pensam a imagem. Em 2012 publicaram Caderno de Imagens do fotógrafo José Luís Neto. A publicação, num discreto papel craft, contém em formato acessível mas de qualidade, uma selecção de duas séries de imagens (High Speed Press Plate, de 2006, e July 84, de 2010), primeiro apresentadas ao público na Galeria Lisboa 20 (2006) e depois na Galeria Miguel Nabinho (2012). São imagens encontradas, sobrevivências que renascem e se revelam a partir de coincidências, imprevistos e vislumbres. A Ymago produziu do mesmo artista uma exposição em 2014 (Re-Turn, no Círculo de Artes Plásticas de Coimbra). Actualmente a Ymago desenvolve também uma estreita colaboração com a coreógrafa Marlene Monteiro Freitas, de quem produziu espectáculos de dança em 2015 (Lisboa) e 2016 (Porto). No trabalho de Marlene Monteiro Freitas há um surpreendente diálogo com as publicações da Imago. A peça de marfim e carne – as estátuas também sofrem é, entre outras, uma meditação sobre “o efeito Pigmalião”. Extrai da obra de Stoichita materiais coreográficos (os címbalos, a cena do jantar, o plinto), explorando a relação entre mobilidade e imobilidade, vida e petrificação, e pesquisando a força motriz do desejo através de uma intensa expressividade do rosto e do corpo. Este foi aliás um aspecto ao qual o próprio Stoichita imediatamente reagiu numa conferência no Porto no ano passado, após uma apresentação do espectáculo.
A forma como, no universo da Imago, teoria, prática artística, livros e eventos se entrelaçam é particularmente bem visível no Projekto Ninfa do ano passado. O programa, parcialmente integrado no Festival Dias de Dança (Porto), incluía dois espectáculos de Marlene Monteiro Freitas (Jaguar e de marfim …); os filmes Regresso à Rua de Éolo, de Maria Kourkouta e A Pedra Triste, de Filipos Koutsaftis; e conferências e conversas com Didi-Huberman e Stoichita. Tudo isto sob a égide da “ninfa moderna”, que curiosamente remete para as próprias origens da Imago na editora Dafne, também ela uma ninfa. Recordamos que a ninfa – personagem que “provindo do passado, se reapresenta no mundo contemporâneo, alterada e intensa” – foi primeiro detectada por Warburg (no livro sobre Botticelli traduzido em 2012), que a entendia como personificação da própria imagem. Didi-Huberman retomou o tema noutro livro, Ninfa Moderna, cuja tradução se lançou ao mesmo tempo.
Que há por detrás da Imago?
Aventuramo-nos nos bastidores do que oficialmente é a editora KKYM, sediada num discreto andar no bairro dos Anjos, em Lisboa, para falar com João Figueira, Marta Mestre e José Luís Neto. Como já referido, o projecto surgiu a três, na colaboração entre João Figueira, Vítor Silva e Marta Mestre; com a deslocação da última para o Brasil, o desenvolvimento tem sido assegurado pelos primeiros. José Luís Neto é um dos artistas associados. Vítor Silva está no Porto.
A conversa fluiu bem para além do tempo previsto, nutrida pela paixão de quem alenta o projecto. Os nossos interlocutores exercem o ofício do livro por gosto, não por obrigação. Não têm à mão um leque de slogans ou frases feitas para comunicar com clareza uma imagem ou marca; pelo contrário, a conversa desenrola-se – e enreda-se – descontraidamente, feita dos desvios, pequenas epifanias e hesitações que costumam ter. Acabamos com mais de duas horas de som gravado, onde é difícil encontrar aquela transparência de sentido tão conveniente para o entrevistador. Editar a conversa para um formato de entrevista de leitura fácil, feita de perguntas oportunamente formuladas e respostas claras e directas, pareceu-nos de alguma forma uma violência à própria natureza da conversa. A nossa solução – e pedimos tolerância ao leitor e aos entrevistados – é, em vez disto, assumir o carácter denso e aberto deste encontro, propondo uma narrativa nossa que, esperamos, o reflicta mais fielmente e faça justiça ao projecto.
Origens
A ideia da colecção surgiu inicialmente em 2007, 2008, entre um grupo de amigos de gerações e formação diversa, a quem o interesse pela teoria da imagem e a descoberta de novos autores e pensamentos juntou. Os percursos dos três fundadores da Imago eram e são diversos. João Figueira é arquitecto formado pela Faculdade de Arquitectura do Porto e exerceu actividade continuada como projectista durante mais de uma década antes de se aventurar num doutoramento que o levou a Helsínquia, com uma passagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris onde estudou com Didi-Huberman. Actualmente ensina na Faculdade de Arquitectura de Lisboa e dedica-se às actividades da Imago. Marta Mestre é curadora e crítica de arte contemporânea, formada em História da Arte na Faculdade Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e em Cultura e Comunicação em Avignon (também com passagem pela École des Hautes Études). Esteve ligada à origem da Imago até que, em 2010, passa a viver no Brasil, onde foi curadora no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e do Instituto Inhotim em Minas Gerais, um dos mais importantes centros de arte contemporânea do continente. Vítor Silva é pintor e professor de desenho na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Além do seu trabalho artístico tem feito investigação histórica sobre o desenho, nomeadamente sobre o pintor Henrique Pousão, o que resultou numa exposição e num livro.
Por uma via ou outra, o pensamento artístico e sobre a imagem aproxima este grupo de amigos. Marta Mestre recorda que João Figueira trouxe à leitura um texto em particular – “Critical reflections,” de Didi-Huberman, publicado na Artforum de Janeiro de 1995 com uma introdução de Rosalind Krauss – que, por um mecanismo obscuro e feliz, despoletou a ideia de traduzir para o português textos e autores sobre a imagem.
Sublinhamos que tanto João Figueira como Marta Mestre e Vítor Silva vêm essencialmente da prática – artística, arquitectónica, da curadoria e da crítica – mais do que do universo teórico (onde se destacam os autores que editam). Como se, naquele momento em Portugal, fosse nas práticas culturais mais do que na investigação teórica que se sentia falta de novas abordagens. Por outro lado, as motivações para levar adiante a ideia inicial eram diversas. Para João Figueira o principal estímulo foi a vontade de partilha, a paixão da descoberta de autores cuja forma de pensar lhe era afim. Para Marta Mestre era também uma forma de ir para além da matriz historicizante da história da arte em Portugal, cristalizada na “sociologia da arte” de José-Augusto França. Sentia que era preciso testemunhar e colmatar uma lacuna, uma vez que os autores que os três já discutiam não estavam a ser publicados em Portugal.
De todas as formas reconheceram a necessidade de trazer estes textos a um público mais abrangente. Nesta altura surgiram também indícios de que estes autores pudessem interessar a novas abordagens à arte e à imagem. A título de exemplo, Paulo Pereira assinalava, no capítulo historiográfico do último volume da obra Arte Portuguesa da Pré-História ao Século XX (2009), coordenada por Dalila Rodrigues, a renovação trazida por autores como Belting, Hubert Damish ou Didi-Huberman numa discussão final do ‘estado da arte’. Mas referências como estas eram isoladas; faltava uma visão acessível e de conjunto onde se reunissem as ideias destes autores. Os fundadores da Imago intuíram que poderia haver receptividade – talvez até um certo desejo – de conhecer estes autores e o seu trabalho por parte de um público potencial diversificado, desde aqueles que frequentavam velhos e novos museus ou projectos independentes de curadoria, até aos públicos do cinema, da fotografia, da arquitectura ou das artes visuais.
Como já foi mencionado, a Imago nasceu como um projecto editorial, inicialmente acolhido pela Dafne graças à abertura de André Tavares. Rapidamente o projecto passou a incluir uma vertente de eventos, sob forma de conferências e outros que traziam a Portugal os autores traduzidos. Esta vertente adoptou o nome de Ymago.
Autores e obras
Marta Mestre: “São essencialmente autores que gostamos de ler, que nos interpelam e que propõem chaves interpretativas de grande valia.” A primeira obra traduzida é o livro de Rancière onde ele expõe o conceito de “partilha do sensível” e define o “regime estético” das artes, fundamental para entender o arranjo político e estético da arte contemporânea. A tradução desta obra foi desde o início consensual. Acrescentou-se à edição o glossário de termos do autor que saiu na versão inglesa, de forma a disponibilizar chaves de leitura ao público português. Depois veio outro livro de Didi-Huberman (O que nós vemos, O que nos olha), que também desde o início tinha sido consensual, e uma obra de Hans Belting que era para ser a Antropologia da Imagem (publicada mais tarde) mas que, por contingência de disponibilidade de direitos e outras, acabou por ser o ensaio A Verdadeira Imagem.
Inquiridos sobre a existência de um carácter programático ou premeditado – uma política – de publicações (que, por exemplo, tão evidentemente deixa de lado os paradigmas anglo-saxónicos, João Figueira diz: “há uma extensa wishlist e depois há as contingências que determinam o que efectivamente vai sair.” Na primeiríssima versão desta lista encontravam-se, por exemplos, autores como Artur Danto, Rosalind Krauss ou Jonathan Crary. A opção por autores de língua francesa ou alemã, menos visíveis no panorama português, teve algo de estratégico – a aposta em traduzir obras em línguas menos acessíveis ao público português, colmatando uma lacuna – mas também muito de prático e pragmático. A decisão final em relação a uma obra é, em boa parte, uma não-decisão, resultado da resposta em relação aos direitos de autor, da disponibilidade do autor para se deslocar a Portugal, de apoios conseguidos… enfim, do trabalho invisível de estabelecer contactos e obter respostas.
O ar de “família” dos livros da Imago deve-se em parte a isto. Quase todos os autores traduzidos cruzam-se na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, onde ensinam ou dão conferências. A sua disponibilidade para o debate, para responder às questões dos seus auditórios, também a sua afabilidade e facilidade no contacto, levava a equipa editorial a crer que a empreitada fosse viável. Neste sentido, a atenção votada a Didi-Huberman prende-se não só com razões de ordem crítica mas também com a facilidade no entendimento com a sua editora (a Minuit) e com a disponibilidade do autor para se deslocar a Portugal.
Campos e paradigmas
No início deste texto referimos uma “mudança de paradigma” detectada em 2013 por Nuno Crespo, e notámos que parte dos créditos na rápida familiarização dos leitores portugueses com nomes como Didi-Huberman, Rancière ou Belting pertence à Imago. No entanto, o projecto não se posiciona intencionalmente face a um determinado campo disciplinar (seja a História da Arte ou outro) onde ambiciona deslocar paradigmas. Havia a sensação de urgência em traduzir, mais do que a pretensão de intervir directamente em debates académicos ou historiográficos, de fazer “escola”. Mesmo quando a Imago mantém parcerias importantes com o Instituto de História da Arte (IHA) da FCSH-UNL (parceria essencial para o nascimento do projecto), o Instituto de Investigação em Artes, Design e Sociedade (I2ADS) da Faculdade de Belas-Artes do Porto, o Colégio das Artes de Coimbra ou a Culturgest (igualmente essencial para o nascimento do projecto).
João Figueira: “Para mim, que havia passado por Foucault – a partir do panóptico, como convém a um arquitecto – e Deleuze, era claro que autores como Didi-Huberman e outros prolongavam, no âmbito estético, as aberturas que os primeiros haviam possibilitado. Mas além do interesse crítico das ferramentas que propunham para descodificar o contemporâneo, a sua leitura era ainda fonte de prazer. Também senti que havia uma espécie de desejo em relação a estes autores, a estas formas de pensamento que esbatem as fronteiras entre alta e baixa cultura, entre cultura material e tradição filosófica, a estes processos de interpretação onde matérias muito heterogéneas e contraditórias se combinavam e ganhavam sentido. Isto a mim parecia-me interessante. Não havia a ideia de mudar a maneira como se escreve e fala sobre a arte em Portugal, não se tratava de pôr de pé um projecto científico ou uma revolução epistemológica. Não estamos a intervir especificamente no domínio editorial da história da arte ou da filosofia de arte, estamos a tentar levar estes autores a um público alargado, de arquitectos, artistas, cineastas, estudantes… Porque é o meio de onde nós vimos.”
Marta Mestre: “Mas no início perseguia-se a vontade de inscrição de um campo. Havia a ideia de que era necessário dar estrutura, instrumentos, textos, substrato a este campo [da teoria da imagem] para o qual estávamos a olhar e que queríamos compartilhar. Tínhamos a clara percepção de que a produção cultural e visual era vista desde paradigmas rígidos que, às vezes, mesmo na crítica ou nas nossas discussões, acabavam por impor uma certa normatividade. Sentíamos que era necessário deslocar e, segundo o jargão dos autores da Imago, abrir a imagem. Não era, por isso, totalmente ingénuo.”
Curadoria de livros e autores
O salto da Dafne para um projecto independente teve um impacto notável na qualidade gráfica dos livros. “O livro torna-se um fetiche,” afirma Marta Mestre. João Figueira, secundado por Vítor Silva, intervém de forma mais directa na edição, nomeadamente na organização dos cadernos iconográficos e a disposição das imagens, trabalho alavancado pela maqueta gráfica de Pedro Nora, que torna cada publicação imediatamente reconhecível. Quando – por exemplo no Atlas ou a Ninfa Moderna de Didi-Huberman ou em O Efeito Pigmalião de Stoichita – as imagens se juntam num caderno os efeitos de montagem fazem surgir novas camadas de sentido, estabelecendo uma rede de afinidades que abre as imagens para novas leituras. Há, confessa João Figueira, algo da utopia, presente em toda a tradução, de melhorar o original.
José Luís Neto nota que, quando muito da publicação e leitura está a passar para o digital, ao mesmo tempo vai se definindo, de forma cada vez mais clara, um espaço para a continuidade do livro. Acontece ao papel um pouco o que aconteceu ao vinil: torna-se um nicho para um público que gosta do livro, e que é cada vez mais fiel e exigente.
Esta atenção ao objecto por parte da Imago costuma agradar aos autores, que logo ficam receptivos para outro tipo de colaborações. João Figueira: “A partir do momento em que dizes a qualquer um destes autores que vamos fazer o seguinte livro, eles estão do teu lado. Depois é fácil convidá-lo para a conferência, pedir-lhe um ensaio…” Entendendo o acto de traduzir de forma abrangente, foi essencial para os editores-curadores aproximar o público aos autores vivos através da conferência, do debate ou da entrevista. (As conferências têm sido registadas em vídeo e estão disponíveis aqui). Esta actividade suplementar torna o autor mais “legível,” traz para cá um mundo que é o seu.
Estas actividades acrescentam – diz Marta Mestre – uma “camada de calor” à frieza ou impessoalidade do livro. José Luís Neto fala da importância deste trabalho por vezes pouco visível dos eventos, que faz ouvir a voz do autor, permite vê-lo e acompanhar o seu pensamento ao vivo. Lembra-se da paixão e entusiasmo do público na primeira conferência da Ymago, em 2011. “O que pode transmitir uma conferência é uma coisa muito rica, e esta riqueza é parte do pensamento da Imago, que é fazer o total em relação à intenção do autor.” O livro funciona assim como o “veículo de união em vários níveis,” que, continua Marta Mestre, “se vai consolidando no site do projecto através dos outros veículos: o e-book, a entrevista radiofónica, o texto que é disponibilizado gratuitamente, tudo isto consolida a experiência do autor.”
É isto – esta justiça feita ao modo de expressão do autor – que justifica continuar a apostar no livro em papel. João Figueira: “O que nós fazemos de facto é uma curadoria de autores. Os autores que publicamos têm uma relação forte com o papel, com o formato livro. Fazer curadoria de autores é entender o sistema de coordenadas e interesses deles, é fazer justiça a este mundo que é o seu: o mundo do livro encadernado, da conferência, da entrevista e do ensaio breve.”
Públicos e mercados
André Tavares costuma definir a Dafne algo ironicamente como uma editora de “vão de escada,” que “ensaia a publicação de livros de arquitectura, agora que já são mais de mil os potenciais leitores interessados.” Perguntamos pelo público da Imago, e como vêem a sua actividade editorial. João Figueira estima que a Imago tem um público habitual de 300 a, no melhor dos caso, 700 e tal leitores… Há livros que se esgotam e outros que se vendem aos poucos, lentamente. Marta Mestre: “Apesar de a colecção ter tido muita visibilidade na crítica quando foi lançada, nós estamos a falar de um campo de leitores e fãs da Imago muito reduzido, da mesma forma que os públicos da arte contemporânea ou da música erudita são muito reduzidos.” Em Portugal, o público para este tipo de autores continua, por enquanto, pouco numeroso. Por isso os apoios e parcerias são fundamentais para viabilizar o projecto e manter os preços num patamar acessível. E o mercado editorial português, além de pequeno, é complicado. A distribuição é um dos aspectos mais difíceis.
Há uma cadência nas publicações da Imago que não obedece a uma lógica de constância. A cota anual de livros publicados oscila entre um e seis. Enquanto pequena editora a Imago está refém de um conjunto de circunstâncias exógenas, desde a disponibilidade de autores, a possibilidade de adquirir direitos de tradução, o acesso a apoios… A necessidade de obter financiamento para esta actividade, cujos ganhos para a cultura portuguesa não correspondem ao retorno económico, impõe um calendário de curto prazo que dificulta uma programação mais consistente. Nunca se conseguiu um apoio plurianual, o que seria necessário para traduzir obras de maior fôlego. Depois, o acesso a apoios públicos é muito dependente dos critérios por vezes voláteis da administração pública. Na área da imagem e das artes, onde o projecto se insere, nem sempre se atribui ao tipo de trabalho desenvolvido pela Imago/Ymago o valor que, a nosso ver, tem para cultivar a dimensão reflexiva da cultura, essencial para a sua fertilidade, sustentabilidade e dinamismo a longo prazo.
O futuro
Nos próximos anos a Imago promete alargar o território percorrido. João Figueira: “A colecção ainda não está em todo o seu desenvolvimento.” Marta Mestre: “Deve estender-se a autores de outras geografias, cosmogonias e tradições interpretativas, e incluir mais autoras.” Ela nota, aliás, que é um pouco constrangedor que todos os actuais autores do catálogo da Imago sejam homens (o que em breve virá a mudar). “Novos círculos de abertura vão chegar.”
Os editores também perspectivam uma nova linha editorial aberta a autores e temas portugueses e à edição crítica e de artista, que aproxima o formato papel e o meio digital, a experiência da leitura com a da conferência.
Porém, fazem notar que infelizmente as condições para desenvolver um projecto como a Imago estão a degradar-se. Referem especificamente o último concurso de apoio às artes da DGArtes que, no domínio da edição, restringe os critérios a temas e autores portugueses. A Imago questiona: “É caso para perguntar quem nos impõe este fechamento nacionalista? Acaso a DGArtes achará que sem o confronto com o outro, sem mapas adequados para navegar num mundo global e contemporâneo, teremos alguma chance? Pela nossa parte respondemos, clara e terminantemente, que não. Paradoxos do processo em curso de revisão de modelo de apoio às artes? Nada de bom agoiram; fazemos votos de que se trate de um lapso e que seja rapidamente rectificado. É a nossa capacidade para descodificar e inserir na cultura e mundo contemporâneo que, em boa medida, está em jogo.”
A arte do funâmbulo
Acabamos este relato com uma última nota nossa, em jeito de conclusão. Relembramos que a Imago não se posiciona a partir de um diagnóstico de mercado (económico ou intelectual) ou de uma crítica cultural, mas que nasce da paixão pela imagem e o seu pensamento, de uma vontade de partilha, e do amor pelo livro. Mesmo assim, contribuiu sem dúvida para alargar os horizontes da escrita e do pensamento sobre a imagem em Portugal. Isto é tanto mais notável atendendo ao facto que a Imago começou a publicar precisamente numa altura em que, na cultura e na sociedade em geral, se estava a sentir de forma mais brutal os efeitos das políticas de austeridade. Num contexto adverso, a Imago conseguiu pôr de pé um projecto cuja relevância esperamos ter transmitido.
Esboçamos este contexto não para fins hagiográficos, mas para propor que o empreendimento da Imago, tão dependente de vontades individuais e afinidades pessoais, não deve ser apenas compreendido desde uma ideia de precariedade (mesmo se ela exista). Cremos que o modo de fazer, mesmo com as fragilidades e contingências aqui discutidas, é indissociável da singularidade deste projecto e também da sua eficácia. Michel de Certeau, em L’Invention du quotidien, associou a ideia de “modos de fazer” à antiga concepção das “artes”, do saber-fazer que opôs ao saber institucional. Para elucidar esta oposição retomou um provérbio referido algures por Kant, de acordo com o qual o saber é da ordem do malabarismo e dos truques de magia, habilidades adquiridas que se acumulam e aperfeiçoam na repetição. A arte, em contraste, seria da ordem do funambulismo, um labor de equilíbrio em que cada movimento tem que ser inventado no momento. Nesta ordem de ideias a Imago/Ymago terá mais de saber-fazer do que da acumulação e da instituição de um lugar e poder próprios que, para Certeau, definia o saber. Há algo de arte, e também de virtude, em não esperar que o mundo instituído – as academias, as editoras, o Estado – supere lacunas, fragilidades e insuficiências para, em vez disso, pôr mãos à obra e reinventar o caminho à medida que se procede.