Olhando para a produção artística de hoje, uma grande maioria trata diretamente de problemas sociais. Artistas, curadores, galerias, museus etc. adotam a linguagem “das ruas”, uma gramática de luta e de engajamento político, que espelha o tom militante que é (ou parece ser) de todos. Não é para menos, aliás. O atual momento do Brasil apresenta-se particularmente difícil e tenso, e a crescente ameaça aos direitos constitucionais dos cidadãos faz reacender os velhos fantasmas da ditadura que imaginávamos enterrados para sempre. (Enquanto escrevia este texto, foi executada Marielle Franco, mulher, negra, da Maré, feminista e ativista dos direitos humanos). Este contexto, vaticinado por alguns como o pior momento da história contemporânea do Brasil, imprime urgência às nossas ações e obriga-nos a um posicionamento efetivo, para além das posições privilegiadas. Faz-nos identificar coletivamente na luta e a querer adotar a mesma gramática daquilo contra o qual se combate.
Ocorre, porém, que este sentimento de “luta comum” (e suas correlatas formas artísticas) é, também, aquilo que ameaça separar-nos. Por mais paradoxal que possa parecer, a nossa capacidade “emancipação” não está na convergência no front, mas no poder de (nos) associar e de (nos) dissociar, de criar rupturas e cisões sensíveis, ou seja, na possibilidade de agenciarmos “práticas de pluralidade” (Rebecca Solnit) contra o “embotamento da nossa imaginação política” (V. Safatle).
Essa contradição, que acima situamos no plano dos acontecimentos recentes, chegou-me na conversa com Carla Chaim, no início deste ano. A artista relatou a ação que ela e um grupo de artistas realizaram na Casa do Brasil, em Madrid, por altura da última feira de arte ARCO. Preocupados com a atual situação no país, o grupo optou por um ato público “já que não fazia sentido uma exposição apenas”, e divulgou um curto manifesto. “Ação e Reação” foi o título escolhido, e o acontecimento reverberou nas redes sociais de forma espontânea.
Tendo esse contexto como pano de fundo, a proposta que Carla Chaim agora apresenta na galeria Raquel Arnaud dá-nos respostas e coloca questões. Com o título sugestivo de “A Pequena Morte”, que é uma outra expressão para o momento do orgasmo, o conjunto de trabalhos desta exposição traduz a síncope do “luto” e do “gozo” que fazem parte da dinâmica do desejo do ser humano. Nas palavras da artista, trata-se de um título para onde convergem simultaneamente “o fim e o êxtase”, de um título capaz de revirar a gravidade que nos prende ao chão.
Vários dos trabalhos aqui apresentados prolongam questões que Carla Chaim vem colocando, em particular desde o ano passado, quando realizou “Óleo Fita Carbono” no Rio de Janeiro. Uma vez mais, interpela-nos sobre a nossa capacidade de imaginar a partir da materialidade, sem que seja necessário adotar o aparato inflamado das ruas. Na contramão do colorido militante que vemos em algumas exposições atuais, a tonalidade aqui é mortiça e rebaixada – monótona quase -, e provoca-nos a inquietante estranheza de ser uma exposição “calma” em tempos tumultuosos. Trata-se, contudo, de um brechtiano efeito de distanciamento que centra no espectador a sua capacidade ativa de aderir e opinar, sem querer submergi-lo no mundo ilusório da narrativa. As bandeiras pretas de Chaim (da série Ele queria ser bandeira), dispostas em varetas frágeis no piso térreo da galeria, são disso um bom exemplo. O papel carbono pesado, cujo formato “duplica” a planta baixa da própria galeria, destitui a irrupção do gesto. “Como levantar bandeiras em tempos de barbárie?”, parece perguntar-nos a artista.
Estando próxima à “alternativa erótica ou emotiva” (antimonumental, diríamos) que a crítica Lucy Lippard mencionou a propósito dos artistas do pós-minimalismo da década de 70, Carla Chaim propõe-nos um itinerário especulativo e provisório que convoca o corpo e a memória numa percepção ativa destas propostas. A dobra, característica de trabalhos anteriores, cede agora relevância à composição através da “soma de diferentes superfícies”, donde surgem “terceiros corpos” das contiguidades e das justaposições. Ao espectador é oferecida uma sutil evidência matérica presente especialmente no piso térreo da galeria, em trabalhos como Gruta, quatro grandes desenhos a bastão oleoso, com cerca de três metros de altura; Arraias e Dois, duas séries que exploram composições com diferentes tipos de papel; corte inversão movimento, uma (de)composição de livros a partir de um estudo de formas geométricas contidas no interior dos mesmos (um “mise-en-abîme” do referente); Line Pieces, flagrantes de uma ação em que o corpo “ficciona” ângulos, cantos, seções; e, finalmente, Luto_luta, um cartaz de autoria da artista Verena Smit, conhecida por desenvolver um preciso trabalho sobre a ambiguidade da linguagem, e que Carla Chaim convidou para integrar esta mostra.
Mas é no piso superior que, julgo, se apresenta um único trabalho capaz de falar por toda a exposição, e de abarcar as lutas (e os lutos) a que nos referimos no início deste texto. Intitulado Somatu, trata-se de uma videoinstalação que é um contínuo fair-play entre corpos, convocando a contemplação e a ação, a distância e a proximidade, o óptico e o háptico. A sua disposição, atravessando toda sala, obriga-nos a um certo tipo de ponto de vista que, somado ao movimento hipnotizante da ação na tela, causa-nos um recuo da linguagem, uma espécie de abertura a uma nova organização do sensível. Investidos de uma densa materialidade, que não busca gêneros ou identidades (difícil identificar se são pessoas, bichos ou amebas), três corpos envolvem-se em uma espécie de “dança de acasalamento” que nos fala de um outro tipo de movimento, dissensual do urbano contemporâneo. Aqui “a artista volta a pensar no mais interno do corpo, nas sensações físicas internas e individuais recriadas por experiências do mundo. Um mundo de luto, mas um mundo também de transformação e prazer”.
Sem convergir para a estética da urgência que vemos ao redor, a exposição de Carla Chaim traz-nos todo o seu léxico, desenvolvido nos últimos anos, e ainda amplia a nossa imaginação sobre outros usos do espaço, mais afetivos e menos possíveis de serem policiados.
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