Aquilo que é pulsante e radical em Álvaro Lapa, se nos desviarmos das problemáticas da abstração e nova figuração que ocuparam artistas e críticos de arte durante boa parte da década de 60, é a sua capacidade de criar gestos artísticos que inauguram uma didática própria. Explico: sem se tratar de um artista alheio à historicidade da própria pintura, antes pelo contrário, Álvaro Lapa abordou a pintura não através do seu “fim” (o que para muitos de seus colegas, significou uma versatilidade disciplinar em prol da contínua “remediatização”), mas precisamente pintando em direção à não-pintura. É, sem tirar nem pôr a pergunta (sem resposta) do filósofo José Gil, no texto que abre o catálogo da sua exposição individual na Gulbenkian, em 1989: “Como afirmar um princípio exterior à pintura pela pintura?”
A “didática” de Lapa, ademais, distancia-se do sentido que podemos dar à palavra “interpretação”, ou seja, a mobilização de um quadro de referências com vista a esclarecer ou mediar a natureza opaca dos signos, entre significado e significante. Todas estas expressões – esclarecer ou mediar – aliás, são banidas do seu “código de escrita” desde os seus primeiros trabalhos, no início dos anos 60. Para Álvaro Lapa, pelo contrário, a pintura é enigma que frustra qualquer reprodução do semelhante e, portanto, qualquer esforço de “decifração”.
Autofágica, a sua pintura descreve-se como “guloseima canibal”, linguagem contorcida sobre si mesma. Como refere o artista, em mensagem cifrada: “Exagerar o literário, penso ser a maneira de curar a situação primordial [da pintura]; de curar a mordidela do cão com a baba do próprio cão”.
“Sem título” (1963) pertence ao núcleo dos primeiros trabalhos que Lapa expôs ao público, no início da sua carreira na década de sessenta. Neste desenho disputam diferentes “intensidades”: o negro denso e resistente, o conjunto de linhas e vazios, a geometria vaga. Justapõe-se indeterminação construtiva e ingenuidade lírica, com a informalidade de quem pinta “limpando” o pincel.
O olhar do espectador, colocado sempre a uma distância calculada, e o campo de visão fragmentário, que reforça o caráter transitório dos “elementos”, fazem com que este desenho pareça “respirar”: ritmo de entrada e de saída, de aparição e de anulação.
Finalmente, os “elementos” aqui presentes são deduzidos através de um suplemento mínimo de referencialidade, que nos afasta e aproxima. A “mesa”, elemento determinante de toda a sua obra, e que mais tarde aparece na longa série “Campéstico”, existe para o artista não enquanto iconografia, mas enquanto coisa que se toca e existe, e onde “a consciência se alarga-alegra”. Um sentido de “política” muito próximo àquele que Hannah Arendt refere em A Condição Humana (1958):
“Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor. Como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens.”
(in “Álvaro Lapa: No Tempo Todo”, Curadoria de Miguel Von Hafe Perez, Fundação Serralves, 2018)