A situação está tensa mas sob controlo, Galeria Arte Contempo, Lisboa, 2008
[Curating]A curadoria no regime estético das artes
[Text pt]À semelhança do trabalho artístico, uma boa parte da curadoria actual inscreve-se no regime estético das artes, o regime que pensa as imagens fora do sistema de hierarquização de géneros, disciplinas e materiais que, durante séculos, enformaram o modo como nos relacionamos com o sensível. Quer isto dizer que, a níveis distintos, é frequente os curadores usarem os objectos da arte fora das suas problemáticas e dos seus contextos específicos, encaminhando a imprevisível pertinência dos objectos nas suas imprevisíveis ...
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À semelhança do trabalho artístico, uma boa parte da curadoria actual inscreve-se no regime estético das artes, o regime que pensa as imagens fora do sistema de hierarquização de géneros, disciplinas e materiais que, durante séculos, enformaram o modo como nos relacionamos com o sensível. Quer isto dizer que, a níveis distintos, é frequente os curadores usarem os objectos da arte fora das suas problemáticas e dos seus contextos específicos, encaminhando a imprevisível pertinência dos objectos nas suas imprevisíveis direcções. A esta “ligeireza” no uso de objectos, conceitos ou inversão de regras expositivas, não nos parece que corresponda uma apologia do curador como autor, mas uma inscrição nessa nova “distribuição do sensível” de que fala Rancière, com novos papéis e funções dos agentes implicados. O curador funciona portanto numa cadeia dinâmica de agentes e imagens em circuito, e a curadoria é feita em contextos polimorfos.
No que respeita às práticas artísticas, o lado prosaico e elementar da própria matéria parece dar corpo à maioria dos actos criativos. Neste caso, a questão não é tanto determinar a “nobreza” do uso de baldes de alumínio, pinos de trânsito, pedras da calçada, fita adesiva, etc., mas a eficácia dos materiais na constituição de uma imagem, aquilo que a torna reconhecível enquanto tal, por mínimo que seja. É do encontro ocasional com os objectos e com a “memória visual” que este facultam, que ocorre a maior parte das práticas dos artistas de A SITUAÇÃO ESTÁ TENSA MAS SOB CONTROLO.
Partamos de uma situação concreta para ilustrar a sobrevivência das formas artísticas na elementaridade dos materiais, e que estrutura a imaginação visual de quem olha. No decorrer da montagem da exposição, André Sousa ensaiou os elementos escultóricos de que dispunha em diferentes variações – alterou muitas vezes a composição, determinando uma multiplicidade de formas. Por exemplo, uma prancha de madeira preta, rectangular, compacta variou entre a linha horizontal do chão e a vertical, apoiada num cavalete. O gesto prosaico foi o de quem joga as possibilidades e a eficácia do material, embora o gesto “afectivo” estivesse carregado de “formas de sobrevivência”.
Apesar de A. Sousa ter posto de lado a apresentação do “quadro preto” para esta exposição, este gesto configurou a percepção da imagem entre a verticalidade e a horizontalidade, que foi “objecto teórico” de discussão, com maior incidência durante o séc. XX (Pollock, Warhol, Morris, Lacan).
Neste sentido, o que gostaríamos de propor é que boa parte das vezes a persistência das formas artísticas manifesta-se através de gestos insignificantes, banais ou estranhos. Inscreveu-se um gesto mínimo numa linha de questões máxima. O que advogamos portanto é a continuidade do pensamento sobre as imagens e sobre a sua visibilidade, independentemente de aspectos de natureza da “representação”, dos materiais utilizados ou da disciplina praticada.
Neste sentido, interessou-nos averiguar quais os desafios que se colocam ao curador no interior desta nova redistribuição do sensível, no regime estético das artes? Como coabitam estas forças contraditórias num tempo em que a estética está em todo o lado, em todos os agentes, na maior parte dos materiais.
O projecto
A SITUAÇÃO ESTÁ TENSA MAS SOB CONTROLO resulta do convite feito a André Sousa (simultaneamente artista e programador de espaços alternativos do Porto) para seleccionar quatro artistas. O objectivo foi experimentar uma situação de “curadoria repartida” a fim de preservar a rede de relações colectivas e de gestão independente que os artistas já haviam tecido entre si. Aderiu-se assim a uma informalidade onde os papéis habituais se entrecruzam. A clara oposição entre papéis de artista e curador tradicionalmente distintos e da nova figura do “artista-enquanto-curador” complexificou-se. Baralhar as regras da representação da curadoria veio trazer um estado de tensão decorrente de sobreposições passíveis de fricção: reivindicações de visibilidade, de autoria, de poder de decisão, bem como o regulamento do concurso e as expectativas do júri.
Numa reflexão mais alargada, constata-se uma idêntica expansão da noção de exposição. O que pode ser uma exposição, hoje? Pode ser um laboratório? Uma experiência? Qual o papel do curador quando o artista entra em cena como protagonista não só da criação mas do display daquilo que propõe enquanto artístico?
A questão desloca-se do que é ou deve ser arte para o que é ou deve ser o trabalho de curadoria. Vários modelos circulam e a sua definição parece confrontar-se com um sopro de exaltação que promove a abertura, a surpresa, a desvinculação a pressupostos, enquanto terreno exploratório, “campo alargado” com fronteiras diluídas. As ressonâncias das ideias curatoriais de Hans Ulrich Obrist estão aqui patentes. Trata-se da acção do curador já não como o “planeador que controla, mas sim quem promove sistemas dinâmicos complexos contínuos”. Assim, em oposição com as visões mais convencionais, os curadores aparecem como agentes que criam sobretudo instrumentos de análise e iniciativas, em vez das habituais cadeias de comando.
Imagens tensas e controladas
Com base nas questões de partida, André Guedes, André Sousa, Gustavo Sumpta, Tânia Bandeira Duarte e Renato Ferrão trabalham em torno dos pólos tensão e controlo, transformando o espaço expositivo num “ringue” onde se medem forças e polarizam contrários indispensáveis. Em paralelo, invoca-se a característica do pensamento em estabelecer raciocínios opostos, a “simultaneidade contraditória” (Freud) que afecta igualmente a experiência estética e a natureza das imagens. Os trabalhos expostos tanto manipulam como neutralizam o espaço, potenciam protagonismos ou simplesmente condicionam a visibilidade das obras, estabelecendo um conjunto constituído por trabalhos relacionados através dos seus próprios intervalos. Convoca-se a migração do olhar de um objecto para outro no seio de um aparato que não ocorre na esfera sequencial (“uma obra a seguir à outra”) mas da simultaneidade. No meio deste fogo cruzado, o espectador passeia-se aparentemente incólume tentando compreender quem arremessa o quê a quem. Depois de detonar o rastilho da disputa relacional, a obra converte-se em exercício de encontro quando interfere com o espaço do espectador. Mas até que ponto é esse encontro também livre de constrangimento?
Durante o processo de montagem, e sem plano definido, a primeira sala foi sendo esvaziada: tornou-se um “cubo branco” formalmente estável, mas sem dúvida um lugar iminente de figurabilidade, espaço de antecipação das imagens que se seguem. É neste lugar que André Sousa constrói um relevo regular extenso a toda a parede que, apesar da sua ”aparente” neutralidade, dita as regras do display da exposição. Aranha Moderno (2008) questiona o sentido impositivo da arquitectura modernista ao promover uma relação imaginária (e utópica) do visitante com o interior da galeria (sugere a possibilidade deste escalar uma das paredes do espaço). Depois de visionarmos o vídeo que espreita do interior de um dos espaços privados da instituição (série de ensaios feitos pelo próprio artista contra uma parede e que termina na contemplação muda do céu estrelado), compreendemos que a proposta investe numa espécie de agenciamento de anacronismos que dá corpo aos trabalhos de André Sousa, realizados com uma memória psíquica no processo e anacrónica nos seus efeitos de montagem.
O edifício da galeria não amordaçou a índole expansiva da obra. Esta não se localizou, preferiu transformar, à revelia, o próprio espaço que a envolve, como um gesto marginal. Sousa urdiu um espaço como a aranha a sua teia, munido apenas de pequenos segmentos. Mas esta tessitura do espaço leva-nos a um pano de fundo sobre o qual o artista tem vindo a pôr em marcha uma indagação polimorfa. Interessa-lhe o esvaziamento e a adulteração dos efeitos primordialmente pretendidos por teóricos e arquitectos (que tal como os super-heróis pretenderam salvar a humanidade). Interessam-lhe os signos que desse transporte e desvio possam ser descortinados. André Sousa perturba assim a fisionomia do espaço inicialmente prevista da exposição, fazendo sobressair a proeminência “inabalável” que caracteriza o cunho da sua arquitectura (neutra, despida), contaminando, como um vírus intrusivo que se propaga e corrói, a elegância minimal que define a maioria dos espaços galerísticos.
Na passagem entre as duas salas da galeria, Gustavo Sumpta instala um trabalho sobre a distribuição física do peso, a instabilidade de corpos no espaço. Sem título (2007), baseia-se num cavalete que sustêm uma tábua de madeira equilibrada por dois sacos pretos cheios de pedras. É uma construção vulnerável e imprevisível que enuncia o estatuto performático dos intervenientes: dos objectos e das pessoas. O espaço público que agencia converte-se num lugar de potencialidades e numa economia de meios. Não obstante, é inquietante o potencial de imagens que convoca. A violência é sempre um excesso sobre os signos, e no caso vertente é latente esse excesso sobre quem olha.
Num sentido mais figurativo, esta peça poderia corporalizar uma forma fálica que aponta primeiro para nós, depois para uma passagem física, à medida que o nosso corpo/percepção transita no espaço. Abertura que convoca o contacto indeferido e adiado que define a manutenção do desejo. Passámos ao lado de um “coito”, prestes a acontecer, entre instalação e espaço físico. (Eles quase que se tocam.) Ironia dúplice e provatória, que nos aflige física e simbolicamente, ao fazer da figura do phallus uma arma letal (consubstanciada no peso viril dos materiais), por um lado, e por outro, denunciando a fragilidade de uma potência, em que a sua obliquidade triunfante e ameaçadora pode, ao mínimo toque incauto do espectador, rapidamente se esgotar numa queda que não sabemos quando ocorrerá, mas que é inevitável. Só no antes e no depois da passagem é que estamos seguros.
Ao centro da sala, Sem título [Previous Scene] (2008) Tânia Bandeira Duarte imprime a uma reunião de objectos do quotidiano uma sensorialidade excêntrica, cuja vibração se revela desproporcionada em relação à simplicidade dos dispositivos. Trata-se de uma montagem de objectos reais e falsos revestidos por um padrão listado e repetido, que se prolonga a uma das paredes da galeria. Este procedimento cria um campo que envolve o espectador num espaço intermédio, onde o tempo de visão é distendido.
Entre a tensão física das peças suspensas de Sumpta e Ferrão, proporciona-se um espaço de atenção que num primeiro tempo repousa o olhar, mas que em seguida o ameaça. Neste sentido, o trabalho de T. Bandeira Duarte propõe ao espectador a experiência da tensão (retiniana) e do (auto-)controlo que é accionado por cada visitante.
Sob a noção de “espaço mental” que a artista tem vindo a trabalhar, os objectos resultam de um processo de desconstrução do pensamento e da sua condição transitiva entre espaço real e ilusão. T. Bandeira Duarte entrecruza um espaço prévio (virtual / abstracto) – constituído pela representação de formas arquetípicas (objectos-função) – com a sua reinterpretação ou adaptação in situ (espaço actual / contexto). Deste modo, concebe um espaço contínuo e mental que é inseparável das coisas que circunscreve, e aglutinador das que estão ao redor. É o caso a inclusão do trabalho de André Guedes, no ritmo padronizado das listas. Abriu-se voluntariamente uma “superfície de contacto” que integra duas prateleiras de Guedes com dois dos seus catálogos (num deles reproduz-se a instalação de T. Bandeira Duarte). É o sinal de uma adaptabilidade orgânica, que o refinamento de uma interacção exercitada entre dois artistas pode traduzir.
Projectado contra a parede do fundo da galeria, Renato Ferrão instala obliquamente duas latas suspensas para simular a passagem de uma porção de tinta de uma para a outra. Em Duelo #2 (2008) assistimos a um confronto de forças contrárias que, levadas ao limite, sugerem o perigo de ruptura, desafiando a resistência dos materiais aplicados e a integridade física do visitante quando este arrisca uma proximidade a um dispositivo que corporalizou uma intrusão no espaço de circulação. Exploram-se as tónicas da resistência, do controlo e da reciprocidade precária entre contrários no espaço, que jogados entre si em regime de mútua dependência, resultam num equilíbrio que se efectua irremediavelmente em tensão.
Porém, uma outra leitura complementar irrompe. A disputa entre dois receptáculos por uma mesma substância, que perigosamente se estende, revela uma ironia latente. O artista lembra-nos que a luta extrema entre pares/similares pode levar à queda de irmãos. É um aviso perante os efeitos da competição desmedida.
Ao mesmo tempo é provocatório para com a ambiguidade do espaço ocupado/não-ocupado, ou requerido, por um companheiro. A fixação caprichosa de dois elásticos redesenha o espaço disponível, nomeadamente a relação do chão com a parede, interferindo com o ponto de vista que o visitante necessita de ocupar para o visionamento ideal do vídeo de André Sousa. Na condição de espectadores temos que gerir com acuidade máxima a nossa relação com o espaço, pois podemos afectar as peças instaladas, assim como – mediante a mesma lógica de reciprocidade entrevista nas duas latas suspensas – ser afectados por elas.
André Guedes apresenta quatro publicações que catalogam as obras dos restantes artistas. Por exemplo (2008) propõe uma reflexão sobre a tradução de uma efeméride para um suporte acrónico de forma a questionar o efeito de alteridade e de desmultiplicação da mesma através do diferimento de critérios editoriais (podemos ver quatro capas diferentes em que cada uma, por seu turno, destaca uma peça em detrimento das restantes). O projecto de A. Guedes anula a experiência de “vazio” pretendida para a primeira sala, tornando-a num espaço de ambiguidades. (Logo à entrada da galeria o visitante pode – ou não – descortinar o resto da exposição).
O recurso à desconstrução enquanto metodologia crítica, permite a Guedes questionar a criação e a curadoria quando partilham diligências comuns e sobreposições de papéis. Entra em jogo a desconfiança para com a neutralidade da representação documental: um questionamento da autoridade curatorial quanto à elaboração de uma ordem, um modo de ver que instaura irremediavelmente uma série de pré-condições que regulam de antemão o olhar do visitante. Esta proposta suprime a palavra – símbolo de poder, veículo de comando, espaço reservado para a defesa do curador. Despido de manifesto de intenções ou de apresentação do conceito que estruturou o projecto expositivo, e sem um alinhamento único de imagens, o(s) catálogo(s) de Guedes desmantela(m) qualquer noção de autoridade discursiva. Uma instância clássica da legitimidade do projecto de curadoria é tomada como arma de arremesso, resultando num gesto de desarticulação que o captura para o redefinir.
As publicações de André Guedes, disseminadas pelo espaço, reorganizaram a exposição, num propósito que baralhou os curadores e parte das suas funções. Em boa verdade, era esse o jogo pretendido: desestabilizar os protocolos de exposição e analisá-los.
Por Marta Mestre | Bruno Marques